Construído na década de 1960, o enorme sistema de proteção contra inundações de Porto Alegre teria facilmente evitado a inundação da cidade, se não tivesse sido sistematicamente negligenciado durante 20 anos.
Por Jeferson Miola
Devido à sua paisagem, Porto Alegre está exposta aos riscos de enchentes do Rio Guaíba.
Portanto, no final da década de 1960, após o maior desastre até então —em maio de 1941— a cidade estava equipada com um sistema eficiente de proteção contra enchentes.
O sistema consiste em uma barreira física resiliente com 2,6 km de extensão e 3 metros de altura, com uma estrutura que fica 3 metros abaixo do nível do solo, chamada Muro Mauá, que possui 14 comportas para impedir a entrada de água. Existem também 68 km de diques de contenção e 23 estações elevatórias para escoar a água das áreas mais baixas da cidade. Foi uma verdadeira fortaleza, pensada para harmonizar com segurança a ocupação humana deste território e proteger Porto Alegre de níveis de água que subiam até 6 metros.
As inundações deste ano resultaram de um grave evento climático, não pode ser totalmente atribuída aos atuais líderes de Porto Alegre, pois é uma consequência do colapso climático mundial gerado pela devastação necrocapitalista.
No entanto, a gravidade, as perdas humanas, os danos materiais e a magnitude da destruição dessas inundações são de fato responsabilidade direta do governo do Estado do Rio Grande do Sul e, no caso de Porto Alegre, da sua prefeitura.
No dia 5 de maio, o rio Guaíba atingiu a cota recorde de 5,33 metros, a mais alta da história. Entre parênteses, as causas para isso, além do volume de chuvas torrenciais no período, estão associadas à exploração agrícola, especialmente voltada para a produção de commodities, que ao longo da história prejudicou gravemente a natureza e alterou as condições dos afluentes do Guaíba, entre inúmeros outros danos humanos, sociais, sanitários e ambientais.
Mesmo assim, com o Guaíba atingindo seu nível mais alto, a cidade ainda deveria estar bem protegida pelo sistema de proteção contra enchentes, que foi construído para suportar níveis de água de até 6 metros de altura.
A magnitude da devastação não foi consequência apenas da gravidade deste fenômeno climático sem precedentes, mas também da falha da Prefeitura na gestão do sistema implementado há mais de 50 anos.
A desproteção da cidade é obra do consórcio de poder que se reveza na liderança da Prefeitura há 20 anos, transformando Porto Alegre num laboratório de experimentos ultraliberais. O território da cidade foi transformado num vale-tudo para a exploração económica inescrupulosa, segregadora e ecocida pelo capital imobiliário em parceria com as finanças e os meios de comunicação hegemónicos.
A negligência do sistema de proteção da cidade tem sido uma política permanente destes sucessivos governos municipais. Em 2018, por exemplo, o prefeito Nelson Marchezan extinguiu o Departamento de Águas Pluviais, deixando a cidade sem sistema de drenagem adequado.
O facto de a estação elevatória de águas pluviais número 17 [EBAP-17] foi quebrada, o que causou inundações em uma área da cidade em setembro passado, era conhecida desde 2018, segundo um Notícias matinais relatório. Apesar disso, o bolsonarista a prefeitura de Sebastião Melo nada fez para resolver o problema, embora tivesse recursos disponíveis para resolvê-lo, e isso agravou a catástrofe atual.
Das 23 bombas que compõem o sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre, apenas seis estão funcionando, porque as outras 17 ou não têm energia elétrica e não possuem geradores de reserva ou linhas de contingência, ou estão submersas – o que é tragicamente irônico.
Foram cometidas falhas administrativas básicas. Por exemplo, faltavam borracha de vedação e parafusos de pressão nas 14 comportas da cidade.
Com o objetivo de preparar a Secretaria Municipal de Águas e Esgotos [DMAE] para a entrega ao sector privado, as administrações de direita que se sucederam durante 20 anos na Câmara Municipal desmantelaram continuamente a inteligência técnica da cidade, de modo que hoje o DMAE tem apenas um terço da capacidade operacional que tinha até 2004.
A responsabilidade da atual Prefeitura é ainda agravada por outros exemplos de descaso. Um deles tem sido a total inação diante da deterioração das comportas e bombas da cidade, mesmo depois de expostas durante as tempestades de setembro de 2023.
Durante a tempestade do ano passado, tanto o prefeito de Porto Alegre quanto o governador do Rio Grande do Sul foram alertados por cientistas, meteorologistas, institutos de pesquisa e universidades sobre o perigo de um novo fenômeno climático severo nesta temporada, e isso aconteceu.
Apesar disso, nada fizeram para corrigir as deficiências conhecidas e preparar um plano de contingência. Pior, em 2023, a Prefeitura não destinou um centavo para investimentos em proteção contra enchentes, e o governador destinou ridículos R$ 50 mil para defesa civil.
Os descasos, omissões e escolhas equivocadas da Prefeitura são inaceitáveis dadas as características da paisagem e da topografia de Porto Alegre. O nível de alerta do Rio Guaíba é de 2,5 metros, e o nível de cheia é de 3 metros.
Em 2015 e 2016, o nível do Guaíba atingiu 2,94m e 2,65m respectivamente – nível de alerta. E em setembro e novembro de 2023, atingiu 3,18m e 3,46m, segundo medições da própria Prefeitura. Apesar destes sinais eloquentes, o governo da cidade permaneceu irresponsavelmente inerte e continuou a negligenciar o seu sistema de protecção contra inundações.
O povo do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre não só não merecia isso como não precisava passar por isso. As perdas, a destruição e o sofrimento não foram causados pela natureza ou por algum castigo divino, mas são de responsabilidade direta do prefeito Sebastião Melo e do governador Eduardo Leite. Eles precisam ser responsabilizados administrativa, civil e criminalmente.
Jefferson Miola é jornalista, membro do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea) e ex-coordenador executivo do 5º Fórum Social Mundial.
Este artigo foi publicado originalmente em português no Brasil 247 e traduzido, com autorização, por Brian Mier. Pode ser lido em sua forma original aqui.
